A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica também recebe os nomes de disregard of legal entity, lifting the corporate veil, disregard doctrine é um instrumento previsto no artigo 50 e seus parágrafos do Código Civil e também nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil.
Ela é aplicada em casos de abuso cometidos pela sociedade, atingindo-se o patrimônio dos sócios, reconhecendo-se a sua responsabilidade ilimitada.
Dispõe o artigo 50 do Código Civil que tal abuso se caracteriza pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. O juiz, contudo, não pode agir de ofício, devendo haver requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
Esse artigo sofreu modificações com o advento da Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), inserindo ao final do caput a expressão “beneficiados direta ou indiretamente”.
Portanto, os benefícios auferidos pelos administradores ou sócios em face de tal abuso podem ser diretos ou indiretos. A desconsideração da personalidade da pessoa jurídica é temporária, perdurando até a integral satisfação dos credores.
Caso contrário haveria a extinção da própria pessoa jurídica, o que ocorre em casos específicos, também previstos no Código Civil, devendo haver a sua liquidação. Não se confunde, portanto, a desconsideração com a despersonalização, essa sim definitiva, devendo ocorrer judicialmente.
São admitidas em nosso ordenamento jurídico, de igual forma, a “desconsideração inversa” ou “invertida”, a “indireta” e a “expansiva”.
Pela primeira, reconhecida pela doutrina, jurisprudência e agora pelo CPC, em seu artigo 133, § 2º e pelo Código Civil, em seu artigo 50, § 3º, inserido pela Lei da Liberdade Econômica, busca-se atingir o patrimônio da pessoa jurídica quando há fraude por parte da pessoa física que a integra. Há uma “blindagem patrimonial” pelo sócio, que impede os credores de atingirem os seus bens.
Na segunda modalidade, a sociedade controladora pratica abusos e fraudes valendo-se de empresa ou empresas controladas, que nada mais são do que extensões das primeiras. Atinge-se, então, o patrimônio da sociedade controladora.
Em relação à última modalidade, visa ela atingir o patrimônio do sócio oculto que se utiliza de uma interposta pessoa (“laranja”) para controlar a sociedade. Assim, o patrimônio do sócio oculto é alcançado.
TEORIAS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Não só o Código Civil traz a previsão da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica. Também O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 28, § 5º o faz.
A regra é a aplicação da chamada teoria maior da desconsideração, sendo necessário que haja o desvio de finalidade caracterizado pelo uso abusivo fraudulento (teoria maior subjetiva) ou confusão patrimonial (teoria menor objetiva).
Para a teoria menor, por sua vez, basta que a personalidade jurídica seja obstáculo à indenização para que haja a sua desconsideração. Não se exige prova da fraude ou do abuso do direito, tampouco da confusão patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e da pessoa física.
Essa última teoria é aplicada, também, no âmbito do direito ambiental, sendo prevista, p.ex., no artigo 4º da Lei nº 9.605/98 e no artigo 34, parágrafo único, da Lei nº 12.529/11.
JULGADOS RELACIONADOS
- Requisitos para a desconsideração no Código Civil
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ARTIGO 50, DO CC. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS. ENCERRAMENTO DAS ATIVIDADES OU DISSOLUÇÃO IRREGULARES DA SOCIEDADE. INSUFICIÊNCIA. DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. DOLO. NECESSIDADE.
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. ACOLHIMENTO.
1. A criação teórica da pessoa jurídica foi avanço que permitiu o desenvolvimento da atividade econômica, ensejando a limitação dos riscos do empreendedor ao patrimônio destacado para tal fim. Abusos no uso da personalidade jurídica justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela dolosamente se prevaleceram para finalidades ilícitas. Tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a interpretação que melhor se coaduna com o art. 50 do Código Civil é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial.
2. O encerramento das atividades ou dissolução, ainda que irregulares, da sociedade não são causas, por si só, para a desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do Código Civil.
3. Embargos de divergência acolhidos.
(EREsp 1306553/SC, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/12/2014, DJe 12/12/2014)
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. Ação de cobrança. Fase de cumprimento de sentença. Desconsideração da personalidade jurídica. Requisitos do artigo 50 do Código Civil. Abuso de direito, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Preenchimento. Negativa. Encerramento irregular da pessoa jurídica ou ausência de patrimônio suficiente para quitar o débito. Circunstâncias que não se enquadram nos limites previstos na legislação para a adoção de providência de caráter excepcional. Precedentes. Recurso Especial não provido. (STJ; REsp 1.785.666; Proc. 2018/0327738-9; AC; Rel. Min. Moura Ribeiro; Julg. 13/12/2018; DJE 19/12/2018; Pág. 13154)
- A instauração do incidente de desconsideração não exige provas de inexistência de bens do devedor
RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CPC/2015. PROCEDIMENTO PARA DECLARAÇÃO. REQUISITOS PARA A INSTAURAÇÃO. OBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE DIREITO MATERIAL.
DESCONSIDERAÇÃO COM BASE NO ART. 50 DO CC/2002. ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DESVIO DE FINALIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL.
INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR. DESNECESSIDADE DE SUA COMPROVAÇÃO. 1. A desconsideração da personalidade jurídica não visa à sua anulação, mas somente objetiva desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem, com a declaração de sua ineficácia para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, incólume para seus outros fins legítimos.
2. O CPC/2015 inovou no assunto prevendo e regulamentando procedimento próprio para a operacionalização do instituto de inquestionável relevância social e instrumental, que colabora com a recuperação de crédito, combate à fraude, fortalecendo a segurança do mercado, em razão do acréscimo de garantias aos credores, apresentando como modalidade de intervenção de terceiros (arts. 133 a 137) 3. Nos termos do novo regramento, o pedido de desconsideração não inaugura ação autônoma, mas se instaura incidentalmente, podendo ter início nas fases de conhecimento, cumprimento de sentença e executiva, opção, inclusive, há muito admitida pela jurisprudência, tendo a normatização empreendida pelo novo diploma o mérito de revestir de segurança jurídica a questão.
4. Os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica continuam a ser estabelecidos por normas de direito material, cuidando o diploma processual tão somente da disciplina do procedimento. Assim, os requisitos da desconsideração variarão de acordo com a natureza da causa, seguindo-se, entretanto, em todos os casos, o rito procedimental proposto pelo diploma processual.
6. Nas causas em que a relação jurídica subjacente ao processo for cível-empresarial, a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica será regulada pelo art. 50 do Código Civil, nos casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial.
7. A inexistência ou não localização de bens da pessoa jurídica não é condição para a instauração do procedimento que objetiva a desconsideração, por não ser sequer requisito para aquela declaração, já que imprescindível a demonstração específica da prática objetiva de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.
8. Recurso especial provido.
(REsp 1729554/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 08/05/2018, DJe 06/06/2018)
- Divórcio e responsabilidade patrimonial no caso de conluio
RECURSO ESPECIAL. 1. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N. 282 E 356 DO STF. 2. LEGITIMIDADE AD CAUSAM. PERTINÊNCIA SUBJETIVA ENTRE O SUJEITO E A CAUSA.
TITULARIDADE DA RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO MATERIAL. 3.
DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. AÇÃO DE DIVÓRCIO.
POSSIBILIDADE. EVIDÊNCIAS DA INTENÇÃO DE UM DOS CÔNJUGES DE SUBTRAIR DO OUTRO DIREITOS ORIUNDOS DA SOCIEDADE AFETIVA. 4. LEGITIMIDADE AD CAUSAM. APLICAÇÃO DA TEORIA DA ASSERÇÃO. 5. SÓCIA BENEFICIADA POR SUPOSTA TRANSFERÊNCIA FRAUDULENTA DE COTAS SOCIAIS POR UM DOS CÔNJUGES. LEGITIMIDADE PASSIVA DAQUELA SÓCIA PARA A AÇÃO DE DIVÓRCIO CUMULADA COM PARTILHA DE BENS, NO BOJO DA QUAL SE REQUEREU A DECLARAÇÃO DE INEFICÁCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO EFETIVADO ENTRE OS SÓCIOS. EXISTÊNCIA DE PERTINÊNCIA SUBJETIVA. 6. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA EXTENSÃO, DESPROVIDO. 1. A ausência de prequestionamento se evidencia quando o conteúdo normativo contido nos dispositivos supostamente violados não foi objeto de debate pelo Tribunal de origem. Hipótese em que incidem os rigores das Súmulas n. 282 e 356/STF. 2. A legitimidade de agir (legitimatio ad causam) é uma espécie de condição da ação consistente na pertinência subjetiva da demanda, ou seja, decorre da relação jurídica de direito material existente entre as partes.
3. A jurisprudência desta Corte admite a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica toda vez que um dos cônjuges ou companheiros utilizar-se da sociedade empresária que detém controle, ou de interposta pessoa física, com a intenção de retirar do outro consorte ou companheiro direitos provenientes da relação conjugal. Precedente.
4. As condições da ação, aí incluída a legitimidade para a causa, devem ser aferidas com base na teoria da asserção, isto é, à luz das afirmações contidas na petição inicial.
5. A sócia da empresa, cuja personalidade jurídica se pretende desconsiderar, que teria sido beneficiada por suposta transferência fraudulenta de cotas sociais por um dos cônjuges, tem legitimidade passiva para integrar a ação de divórcio cumulada com partilha de bens, no bojo da qual se requereu a declaração de ineficácia do negócio jurídico que teve por propósito transferir a participação do sócio/ex-marido à sócia remanescente (sua cunhada), dias antes da consecução da separação de fato.
6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta extensão, desprovido.
(REsp 1522142/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/06/2017, DJe 22/06/2017)
- Venda de bem pelo sócio antes do reconhecimento da desconsideração
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO.
ALIENAÇÃO DE IMÓVEL POR SÓCIO DA PESSOA JURÍDICA ANTES DO REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. FRAUDE À EXECUÇÃO NÃO CONFIGURADA.
1. Cinge-se a controvérsia em determinar se a venda de imóvel realizada por sócio de empresa executada, após a citação desta em ação de execução, mas antes da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, configura fraude à execução.
2. A fraude à execução só poderá ser reconhecida se o ato de disposição do bem for posterior à citação válida do sócio devedor, quando redirecionada a execução que fora originariamente proposta em face da pessoa jurídica.
3. Na hipótese dos autos, ao tempo da alienação do imóvel corria demanda executiva apenas contra a empresa da qual os alienantes eram sócios, tendo a desconsideração da personalidade jurídica ocorrido mais de três anos após a venda do bem. Inviável, portanto, o reconhecimento de fraude à execução.
4. Recurso especial não provido.
(REsp 1391830/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/11/2016, DJe 01/12/2016)
- A desconsideração deve atingir somente sócios que contribuíram para a prática do abuso da personalidade
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. HERDEIRA. SÓCIO MINORITÁRIO. PODERES DE GERÊNCIA OU ADMINISTRAÇÃO. ATOS FRAUDULENTOS. CONTRIBUIÇÃO. AUSÊNCIA. RESPONSABILIDADE. EXCLUSÃO. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cuida-se, na origem, de ação de indenização por danos morais e materiais na fase de cumprimento de sentença. 3. A questão central a ser dirimida no presente recurso consiste em saber se a herdeira do sócio minoritário que não teve participação na prática dos atos de abuso ou fraude deve ser incluída no polo passivo da execução. 4. A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica. 5. No caso dos autos, deve ser afastada a responsabilidade da herdeira do sócio minoritário, sem poderes de administração, que não contribuiu para a prática dos atos fraudulentos. 6. Recurso especial não provido ( RECURSO ESPECIAL Nº 1.861.306 – SP (2017/0131056-8), Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 02/02/2021).